quinta-feira, 14 de julho de 2011

Procrastinar ou a lenda da mera existência

Eu não vou morrer uma vida não vivida.
Eu não viverei no medo de cair ou pegar fogo.
Eu escolho habitar os meus dias, permitir que a minha vida se abra para mim,
para me fazer menos medrosa, mais acessível,
a soltar o meu coração até que se torne uma asa, uma tocha, uma promessa.

Eu escolho arriscar o significado da minha existência;
de modo que o que vem a mim como semente siga para o seguinte, como uma flor,
e o que vem a mim como flor, prossiga caminho como fruto…

Author : Dawna Markova
Vida não Vivida
(tradução livre minha)




“Como o palhaço, vamos fazendo as nossas cabriolas (…) adiando sempre o grande acontecimento (…). Nunca fomos. Nunca somos. Estamos sempre na contingência de vir a ser, separados, desligados, sempre. Sempre do lado de fora.” Henry Miller.

Nunca fomos. Nunca somos. O mais provável é que nunca venhamos a ser, mas vivemos na esperança de que o dia chegue e alguma coisa, extrínseca a nós, nos empurre para sermos. Não teremos de arcar com a responsabilidade de tomar a decisão de ser, diremos “aconteceu” e ficamos descansados. Ou então, o dia não chega e continuamos a procrastinar, velhos do Restelo no cais, vendo o barco partir, sabendo que devíamos ir nele.

Ah, covardia de ser que se esconde de si mesma num vão de escada, num esconso da alma!

Procrastinadores. É o que somos. Temos sempre tempo, logo à tarde, amanhã, quem sabe. Hoje não temos tempo, há outras coisas para fazer. É a lenda da mera existência sim, o adiar da vida, deixar de ser para apenas existir e arrastar-se nos dias.

Procrastinar não é um pecado capital, mas é certamente primo direito da preguiça. Alguns de nós já fizeram disto uma arte, diria mesmo, somos mestres no protelar. Afiamos o lápis até á exaustão e a página permanece em branco.

A procrastinação toca a todos, é universal. Todos queremos evitar a dor ou o incómodo de fazer algo que sentimos ser maçador, estúpido, injustificado, duro, complicado, arriscado. E quando nisso está envolvida a emoção, ui… Enganamo-nos a nós mesmos com desculpas frágeis. Construímos complicados silogismos, de premissas verdadeiras talvez, mas de conclusão falsa.

O pior é que neste círculo vicioso de protelar, metemos no mesmo saco as coisas que não queremos fazer mas não poderemos deixar de fazer, e aquelas que queremos, que desejamos ardentemente mas que sabemos que podem obrigar-nos a mudar tudo, a destruir para erguer de novo, a recomeçar. Isto faz medo. É verdadeiramente assustador.

Stress, angústia, noites sem dormir rebolando na cama, dores de cabeça, sensação de culpa, ansiedade, baixa auto-estima e o pior de tudo, mentalidade auto-destrutiva, como de se repente os neurónios enlouquecessem e ganhassem anticorpos… a eles mesmos. Preguiça, literal ou emocional perante uma situação cujas implicações podem ter um grande impacto na nossa vida.

Reconhecemos certamente que a maioria das vezes é mais doloroso procrastinar que dar o tal salto no escuro. E no entanto, quando ganhamos coragem e aceitamos de peito aberto o impacto, há uma sensação de alívio imediato, de prazer de ter finalmente conseguido.

Reconhecemos certamente, e sabemo-lo da pior forma, que um dia, sentiremos a dor do remorso de não ter feito, saber que bastaria um só passo para chegar lá, mas o medo paralisou-nos. Costumo dizer que prefiro lamentar ter feito, que sentir remorso por não ter feito e ficar na ignorância do que poderia ter acontecido se… Se… Se…

Como se engole um crocodilo? Uma dentada de cada vez. Obviamente que não há goela que aguente engolir o bicho todo duma só vez. Um passo atrás de um passo, sem medir o todo que nos esmaga. Mas cada passo firme, e sem paragens, sem olhar para trás. Com a consciência de que cada momento é novo e não vivido, cada momento é diferente e não há comparações com momentos passados. Com a consciência de que a vida é nossa, somos nós que a vivemos e só a nós mesmos teremos de prestar contas por ela, sabendo que a vida nos acontece sempre que paramos e nos amedrontamos ou fazemos outros planos.

Escrever mais sobre isto? Hum… Talvez amanhã…

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Come o morango!

No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar:
um estribilho antigo
um carinho no momento preciso
o folhear de um livro de poemas
o cheiro que tinha um dia o próprio vento...

Mário Quintana
Eterno espanto

O homem escorregou no barranco e agarrou-se às raízes de uma árvore. Não se apercebera do risco, não calculara aquele perigo. Agora é que estava feito!
Em cima do barranco, um enorme urso esperava por ele, com toda a calma de quem sabe que o jantar pode demorar, mas está garantido. Quando se babava na antecipação da sua carne fresca, parecia até que se ria.
No lado de baixo do barranco, um grupo de onças impacientes e famintas começavam a combinar entre si, por antecipação, o pedaço que cada uma lhe haveria de comer, caso escorregasse por ali abaixo.
O homem olhava para cima e via o urso rindo e esperando. Encolhia-se para que ele nem sequer chegasse na sua cabeça. O homem olhava para baixo e encolhia-se para que as onças não o agarrassem pelo fundo das calças. As onças lá em baixo querendo prová-lo, e o urso em cima querendo devorá-lo e ele ali cada vez mais encolhido e encurralado, sem ver uma saída.
Nesse momento de aflição, ele olhou para o lado esquerdo e viu um morango vermelho, lindo, com aquelas escamas rubras reflectindo o sol. Que diabo, que raio de sítio para nascerem morangos. E que pensamento estúpido lhe ocorreu naquele momento. E porque não? Num esforço supremo, apoiou o seu corpo, sustentado apenas pela mão direita, e com a esquerda agarrou o morango. Levou-o à boca e  deliciou-se com o sabor doce e suculento. Um verdadeiro prazer, quem sabe seria o último prazer da sua vida....
Nesse momento, esqueceu o urso e as onças. Nesse instante de prazer, conseguiu perceber que o urso não era tão grande assim, talvez fosse apenas só mesmo um filhote. Dois ou três berros bem dados e uma dança macabra afugentavam o bicho. E as onças estavam a empalidecer de aborrecimento. Não tarda, iriam embora, tão famintas como vieram mas fartas de esperar. As onças não foram abençoadas com a virtude da paciência.
Pois é, dane-se o urso e comamos o morango!
Raios partam as onças, mas comamos o morango!
Sempre existirão ursos querendo comer as nossas cabeças e onças à espera de provar o nosso rabo. Isso faz parte da vida, O importante é saber comer os morangos, sempre. Nós não podemos deixar de comê-los só porque existem ursos e onças.
E agora dizes tu assim: Ah, isso é muito bom de dizer, mas eu tenho muitos problemas para resolver!
Tens e terás! Problemas não impedem ninguém de ser feliz. O facto do teu chefe ser um chato não é motivo para deixares de gostar do teu trabalho. O facto de a tua mulher estar com dor de cabeça não vos impede de deitarem juntos, agarradinhos. O facto do teu filho ir mal na escola não é razão para não dares um passeio pelo campo com ele.
Come lá o morango, e vive esse momento como se fosse o último. Sabes lá se não o é.


Parábola das asas

Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
.../...

Chico Buarque

O anjo ajoelhou-se aos pés de Deus e disse:
- Senhor, visitei a Tua criação como me pediste, Fui a todos os cantos do mundo. Observei cada uma das Tuas crianças humanas …
Deus olhou para o anjo e percebeu no seu rosto o que as suas palavras omitiam.
- E o que é que te intriga? O que foi que te incomodou?
- Não compreendo uma coisa, Senhor… Porque é que cada uma das pessoas sobre a terra tem apenas uma asa? Nós, os anjos, temos duas... Podemos chegar até ao amor que o Senhor representa sempre que desejarmos. Podemos voar com toda a liberdade sempre que quisermos. Mas os seres humanos, com uma única asa, não podem voar. Toda a liberdade e todo o mundo para verem e os seus pés não se levantam do chão… Desculpa a franqueza, mas parece uma ironia… Um desperdício. Eles nem sabem...
Deus na brandura da voz, respondeu pacientemente ao anjo:
- Sim, eu sei disso. Sei que fiz os humanos com apenas uma asa.
Mas o anjo queria entender. Não se conformava com uma resposta tão lacónica e insistiu:
- Mas porque Deste aos homens apenas uma asa quando são necessárias duas para poder voar, para poder ser livre?.. E há ainda outra coisa… As asas dos anjos são todas iguais entre si, as dos humanos são diferentes… Tão bonitas, plumagens coloridas, e eles ignoram…
Deus não teve pressa de falar. Sorriu condescendente. Naquele dia tinha-lhe calhado um anjo argumentador.
- Eles podem voar sim, meu Anjo. Dei aos humanos apenas uma asa para que eles pudessem voar mais e melhor que Eu ou Vocês, e todos os meus Arcanjos. Para voar, meu amigo, precisas das tuas duas asas... Mas embora tenhas toda a liberdade do mundo, na verdade, estarás e voarás sempre sózinho. Como Eu...Mas os humanos... Os humanos precisarão sempre de dar as mãos a alguém a fim de terem as duas asas. Cada um deles tem na verdade um par de asas, uma outra asa igual à sua, em algum lugar do mundo noutro alguém que completa o par. Mas isso nunca os impedirá de voar com outro par de asas diferentes, para que aprendam que a diferença não se mede pelo colorido da plumagem, mas pela grandeza do coração. Assim, dei-lhes a possibilidade de aprenderem a respeitar-se, pois ao quebrarem a única asa de outra pessoa podem estar acabando com suas próprias chances de voar algum dia. E assim meu Anjo, eles têm também a liberdade de escolher aprenderem a amar verdadeiramente outra pessoa, seja esta a que tem a asa igual à sua ou amando alguém diferente, aceitando as diferenças... Aprenderão que somente amando, eles poderão voar. Tocando a mão de outra pessoa, num abraço afectuoso, sincero, eles poderão encontrar a asa que lhes falta e voarão. Mas somente através do amor. E assim, eles nunca estarão sozinhos, quando forem voar.

Que possamos encontrar todos uma outra asa, para podermos voar!

(Adaptação duma parábola de autor desconhecido)