segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Predador

Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventre que surgimos.

Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue'


Nada neste mundo é mais predador que o ser humano. E o maior predador do ser humano é outro ser humano. Não sei se o que nos motiva é a adrenalina da caça ou o sentimento de omnipotência perante o destino de outrem, um alimento de egos distorcidos.
Há pessoas que só são felizes quando são grandes e a única grandeza que conhecem é caçar o seu semelhante. O predador assusta, porque parece poderoso. Aproxima-se silencioso e mortífero, sem que nos apercebamos do seu ataque e quando damos por nós, estamos irremediavelmente presos na sua teia. De maldade, ou sedução, não interessa. E quanto mais estrebuchamos para nos libertarmos, mais nos enredamos, perdemos por completo o discernimento.
Mas o que me interessa agora, não é saber o que os motiva na caça, mas o que os detém, a esses senhores do medo e da ameaça. O que os detém é a fome. A indiferença. A falta de estímulos para a caçada, a nossa capacidade para ultrapassarmos a nossa indolência e indulgência perante eles e as situações por eles criadas. O que os detém é o nosso poder. É pararmos e fazermos do medo o nosso companheiro e aliado. Assim o medo deixa de ter poder sobre nós e nós somos livres de passar por cima dele. Alguns predadores não suportam ser olhados nos olhos, confrontados com as suas próprias vítimas.
O que os detém é o nosso poder de pararmos e olharmo-nos no espelho. Porque nós também somos predadores de nós mesmos, quando nos perseguimos com a mesma impiedade que os outros, ou quando nos fazemos de vítimas a toda a hora.

Sem comentários: